quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Forno Solar

 
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No refeitório da escola, na pequena cidade de Dinant, na Bélgica, havia varias mesas enfileiradas, com lugar para oito alunos. Cada uma delas e seus ocupantes eram postos sobre a responsabilidade de um dos alunos do último ano de estudo, que também eram responsáveis pela elaboração do cardápio do mês.

Na minha mesa estavam sentados sete alunos, três de uma mesma família 13,14 e 15 anos, dois irmãos e dois filhos únicos, estou falando dos anos 70. Todos eram muitos especiais, uns davam trabalho para os professores, outros tinham conflitos de relacionamento com a própria família, outros, dificuldades em se adaptar às regras de vida em sociedade, mas todos eram muito unidos na hora em que alguma ameaça vinha de fora do grupo.

Num fim de semana de outono, fui convidado pelos três irmãos a visitar sua família em Maredret, vilarejo de artesãos que remete um pouco como conceito ao povoado de Bichinho, perto de Tiradentes. Para chegar à casa da família tive que deixar o carro embaixo de uma pirambeira e subir a pé até alcançar a casa.

A casa luminosa, aberta para a natureza, tinha na sala principal um atelier onde a mãe fiava a lã tingida com pigmentos naturais que, depois de ser prensada num imenso tear, acabava em tapeçarias contemporâneas, com representações de sonhos, angustias e visões.

Do lado de fora da casa, uma fundição estava em plena atividade, o escultor Felix Roulin, pai dos três meninos, estava fundindo peças gigantescas para o espetáculo que o Groupe Plan K ia apresentar em Bruxelas. A cena era antológica e fascinante: nunca tinha assistido a uma fundição. Felix me fazia pensar no deus Vulcano, com fogo, cheiro de sulfuroso, calor e fusões.

Sentamo-nos à mesa da sala-cozinha para conversar: Emanuel me mostrava os desenhos criados por ele para suas historias em quadrinhos, Corantin me dava seus ensaios de poesias para ler e Pascal me pediu para acompanhá-lo até o jardim para me mostrar sua ultima criação. O dia estava ensolarado, coisa rara na Bélgica, mas não única como as más línguas costumam falar.

Passamos primeiro pelo galinheiro, onde levantamos cuidadosamente uma poedeira, escondida na sua caixa, para sutilmente lhe retirar uma das suas obras e, com o ovo na mão, fomos até uma escultura de espelhos assentada num toco queimado. Meu guia olhou para ver a posição do sol e deu uma ajustada na sua obra, ajoelhou-se e quebrou num gesto certeiro a casca do ovo liberando seu conteúdo que parecia refletir a cor do sol e as nuvens no caleidoscópio. Acreditei, em silencio, que fosse um despacho, parte de um ritual de boas vindas na casa. A gema se cobriu devagar, muito lentamente, de um véu opaco e a clara mudou sua textura gelatinosa, deixando sua transparência dar lugar a cor branca, com densidade mais forte que comemos em seguida.

Atento a novos tipos de cozimentos, mais tarde tive a possibilidade de comer um ovo estalado na pedra, numa viagem no deserto entre a Líbia e o Egito, e, no deserto de Atacama, no Chile, um ovo cozido nas águas borbulhantes dos gêiseres. Nos Açores, na Ilha de São Miguel, existe um cozido tradicional de carnes e legumes com cozimento lento debaixo da terra, que aproveita o calor das furnas.
Quem diria que uma experiência de física feita por um garoto de 12 anos nos anos 70 seria uma premonição para os dias de hoje, a procura de energias limpas. Um ovo cozido pelos raios do sol se refletindo numa escultura de espelhos pode ser o prenuncio de uma nova era, como foi a do homem caçador e coletor quando adestrou o fogo.

domingo, 8 de novembro de 2009

O canto do galo

 


Cinco da manhã, o có-có-ró-có do galo vizinho do Pouso da Chica acorda a turma do quintal.

Estou de férias.

Retomo meu sono deixando ao galo o difícil labor de acordar o sol nessa época chuvosa em Diamantina.

Cot-cot-cot... São oito horas e as frenéticas galinhas festejam o amanhecer com os ovos botados.

No sobe e desce pelas ruelas e becos de Diamantina procuro o antigo Mercado dos Tropeiros, um galpão com toda a estrutura em madeira que inspirou o arquiteto Niemeyer nos esboços do seu projeto para o Palácio da Alvorada. Hoje, Mercado Municipal, ele abriga aos sábados uma feira de pequenos produtores e quituteiras da cidade e dos arredores. Uma grande miscelânea que vai de produtos da horta, comidinhas, doces, cristais e artesanato.

Saindo da feira eu já levava na minha cesta alguns ingredientes regionais como maxixe fofo em formato de pimentão verde alongado, bem diferente do maxixe bojudo e espinhoso, que nas receitas tradicionais após ser escaldado é servido recheado com carne moída, brotos de samambaias a serem fervidos para tirar o amargo e depois picados e refogados na manteiga, um punhado de jambo branco com seu delicado sabor de rosa.

A Praça do Velho Mercado estava toda enfeitada por estandartes com imagens de santos e instrumentos musicais.
Lá estava o retrato de um galo, nas portas e balcões das lojas, nos postes, nos caminhões, anunciando as “Bandas de Cá”, convidando todos a assistir o festival de bandas tradicionais do interior de Minas no domingo na praça.

Nos arredores me deparei com uma loja de delicatessen: a Athenas do Norte. Lá encontrei uma variedade de produtos sofisticados como lingüiça de cordeiro, queijos variados, cervejas artesanais e uma adega com vinhos nacionais e importados muito bem escolhidos. A própria dona aconselhava os compradores indecisos, no meu caso ela me comprovou por uma degustação de cachaças de alambiques renomados e de pequenos produtores a fama do Estado por seus destilados.
Na despedida ela me sugeriu ir ao “IV festival de Frango Caipira” no distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras.
No dia seguinte fui, debaixo de chuva, até o pequeno povoado situado a 34 km da cidade com duas amigas de Caruaru para descobrir a origem do festival e experimentar alguns dos pratos.

A estrada de terra que leva até São Gonçalo do Rio das Pedras, é um regalo para a vista. Cadeias de rochosas negras, jardins de pedras brotadas, fachadas de palácios góticos esculpidos pelas águas e ventos, mata nativa e pastos verdes banhados por pequenos riachos e cachoeiras.

A escolha do ingrediente de base para caracterizar o festival é a carne de frango caipira, por ser a carne mais utilizado nas refeições dos 834 moradores do povoado, explicou-me o dono do restaurante Angu Duro.

As receitas são elaboradas nos fogões a lenha, que tem a particularidade nessa região de ser construído sobre pés de madeira. Nos cardápios dos restaurantes e pousadas se encontravam: frango com ora-pro-nobis, frango ao molho pardo, frango com creme de milho, frango com quiabo, ensopada de frango com vinho, frango afro-mineiro.

No dia seguinte, na Pousada, o canto do galo despertou em mim a memória dos sabores dos pratos experimentados no Festival e pedi dois ovos fritos na manteiga no café da manhã.
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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Comer, lembrar, viver por Rodrigo Balbueno -

 


Em poucas coisas nossa condição humana revela-se tanto como na relação que temos com a comida e tudo que a cerca. Ao mesmo tempo em que nela se exprime toda a diversidade e a singularidade resultante de milhares de anos de evolução, essa relação mostra bastante bem o quanto nos assemelhamos e como as diferenças não são capazes de obliterar nossa condição essencialmente una, seja quando se fala de povos geograficamente distantes, ou quando se trata de uma separação de ordem econômica.
Do churrasco na laje à alta gastronomia nos salões mais refinados, sempre há alguém que se preocupa com um jeito peculiar de manipular o que vamos comer; um pequeno segredo que diferencia a forma de preparo ou um fornecedor recôndito que tem um ingrediente capaz de tornar uma receita especial.
Na relação das pessoas com a comida vive também o que há de mais nobre em nós: a generosidade de investir o tempo para um prazer que pode ser tão fugaz, a humildade do permanente aprendizado, a curiosidade por investigar o que pode haver por trás das sensações que os alimentos nos podem despertar.
Memória e desejo transformando nossa necessidade mais básica em algo que a excede e eleva a outras esferas a forma como a satisfazemos. Em nosso paladar está a chave para uma viagem no tempo e em cada um de nós há uma “Madeleine” capaz de nos transportar instantaneamente a tempos distantes.
E os maravilhosos paradoxos dessa relação, pois quando se trata de comida, a sofisticação e o requinte não são atributos inseparáveis do luxo e do refinamento.
Há muitos anos, no interior do Rio Grande do Sul, tínhamos como vizinhos uma família cujo pai cultivava o hobby da criação de galos de rinha, muito antes do ecologicamente correto e muito depois de Jânio Quadros.
A temporada de rinhas era precedida por uma longa preparação; dos ovos aos grandes campeões uma rigorosa seleção é necessária. Como ocorre em qualquer esporte, os aspirantes menos hábeis vão sendo instados a procurar outro rumo, com a diferença que, quando se trata de galos de rinha, seu nobre destino pode ser a panela, nesse caso um galo com massa que coroava de uma forma bastante peculiar uma carreira fadada ao fracasso.
Sacrificados logo cedo, os galos iam pra panela de ferro no fogão à lenha, fritos em gordura animal e temperado com as ervas colhidas na horta, para longas horas de cozimento. A massa era preparada com os mesmos ovos que a providência poderia haver convertido em um grande campeão ou no acompanhamento para a massa; mistérios do destino aviário.
À tarde o cheiro tomava conta do espaço, enquanto os longos fios amarelos de massa descansavam sobre a mesa salpicada de farinha, e cedo da noite já estava tudo pronto. A carne escura e densa envolta em um molho espesso que se abraçava aos fios amarelos da massa; um sabor único, guardado para sempre na memória.
Em um galpão de madeira sem forro, ao lado do “tambor” onde se decidia o destino das aves belicosas, os amigos dividiam uma grande mesa em uma refeição inesquecível. No ambiente o mais simples possível, o luxo estava na generosa acolhida, no encanto das coisas feitas com amor e dedicação, no prazer maior de dividir a comida com aqueles que amamos.
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