quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Comer, lembrar, viver por Rodrigo Balbueno -

 


Em poucas coisas nossa condição humana revela-se tanto como na relação que temos com a comida e tudo que a cerca. Ao mesmo tempo em que nela se exprime toda a diversidade e a singularidade resultante de milhares de anos de evolução, essa relação mostra bastante bem o quanto nos assemelhamos e como as diferenças não são capazes de obliterar nossa condição essencialmente una, seja quando se fala de povos geograficamente distantes, ou quando se trata de uma separação de ordem econômica.
Do churrasco na laje à alta gastronomia nos salões mais refinados, sempre há alguém que se preocupa com um jeito peculiar de manipular o que vamos comer; um pequeno segredo que diferencia a forma de preparo ou um fornecedor recôndito que tem um ingrediente capaz de tornar uma receita especial.
Na relação das pessoas com a comida vive também o que há de mais nobre em nós: a generosidade de investir o tempo para um prazer que pode ser tão fugaz, a humildade do permanente aprendizado, a curiosidade por investigar o que pode haver por trás das sensações que os alimentos nos podem despertar.
Memória e desejo transformando nossa necessidade mais básica em algo que a excede e eleva a outras esferas a forma como a satisfazemos. Em nosso paladar está a chave para uma viagem no tempo e em cada um de nós há uma “Madeleine” capaz de nos transportar instantaneamente a tempos distantes.
E os maravilhosos paradoxos dessa relação, pois quando se trata de comida, a sofisticação e o requinte não são atributos inseparáveis do luxo e do refinamento.
Há muitos anos, no interior do Rio Grande do Sul, tínhamos como vizinhos uma família cujo pai cultivava o hobby da criação de galos de rinha, muito antes do ecologicamente correto e muito depois de Jânio Quadros.
A temporada de rinhas era precedida por uma longa preparação; dos ovos aos grandes campeões uma rigorosa seleção é necessária. Como ocorre em qualquer esporte, os aspirantes menos hábeis vão sendo instados a procurar outro rumo, com a diferença que, quando se trata de galos de rinha, seu nobre destino pode ser a panela, nesse caso um galo com massa que coroava de uma forma bastante peculiar uma carreira fadada ao fracasso.
Sacrificados logo cedo, os galos iam pra panela de ferro no fogão à lenha, fritos em gordura animal e temperado com as ervas colhidas na horta, para longas horas de cozimento. A massa era preparada com os mesmos ovos que a providência poderia haver convertido em um grande campeão ou no acompanhamento para a massa; mistérios do destino aviário.
À tarde o cheiro tomava conta do espaço, enquanto os longos fios amarelos de massa descansavam sobre a mesa salpicada de farinha, e cedo da noite já estava tudo pronto. A carne escura e densa envolta em um molho espesso que se abraçava aos fios amarelos da massa; um sabor único, guardado para sempre na memória.
Em um galpão de madeira sem forro, ao lado do “tambor” onde se decidia o destino das aves belicosas, os amigos dividiam uma grande mesa em uma refeição inesquecível. No ambiente o mais simples possível, o luxo estava na generosa acolhida, no encanto das coisas feitas com amor e dedicação, no prazer maior de dividir a comida com aqueles que amamos.
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