Conforme procuramos analisar anteriormente a crise européia dos cavalos moídos
para hambúrguer está longe de terminar, visto que a “caixa preta” apenas foi
aberta. O que há no seu interior vamos sabendo aos poucos, mas já nos permite
outras reflexões.
I
Em primeiro lugar, há muito mais empresas
envolvidas do que à primeira vista. Parece se tratar de uma prática comum, e
não de uma ação isolada de produtores inescrupulosos. Anteontem foi o dia de
aparecerem a Nestlé (proprietária da Findus), o frigorífico JBS e outros.
Segundo o ministro da agricultura da Irlanda “o produto da Findus que continha
100% de carne de cavalo é uma mostra da complexidade do problema. Esses
produtos eram feitos por uma empresa sueca que, na verdade, comprava produtos
processados de uma empresa francesa em Luxemburgo, que comprava produtos por
meio de um operador cipriota, que comprava na Holanda; e a Holanda, na verdade,
comprava carne de cavalo da Romênia". Estes, então, são os verdadeiros
elos do que se convenciona chamar “cadeia alimentar”, ligando as terras do
conde Drácula à bolsa de mercadorias de Londres.
Na verdade, uma simples cadeia de commodities
movida não por princípios alimentícios, sanitários, ou éticos, não pelo
encadeamento de produtos e processos controlados, mas pelo chamado “custo de
oportunidade”. Veio à luz, por exemplo, que o dono de um abatedouro foi
contratado para retirar cavalos com lesões mortais de uma competição britânica,
a Grand National. Cavalos inservíveis moídos. Mas cavalos aos quais, como se
comprovou em parte, fora ministrada fenilbutazona, nociva à saúde humana.
Abutres, a única palavras que me ocorre.
Em segundo lugar, aparece o motivo do envolvimento
do JBS no assunto rumoroso. Como a carne brasileira vem sofrendo restrições -
graças a caso comprovado de “vaca louca” (encefalopatia espongiforme) em nosso
rebanho, em 2010 - o frigorífico entendeu que devia fazer uma operação
triangular, comprando carne européia como medida para evitar que eventuais
mudanças legais ou barreiras ao comércio internacional prejudicassem o
fornecimento aos seus clientes. Mais uma razão meramente econômica, de defesa
de posição no mercado, leva o gigante brasileiro a comprar gato por lebre,
cavalo por boi.
Em terceiro lugar, acusado de "complacência
catastrófica", o governo britânico reage prometendo "a maior
investigação já feita" sobre atividades criminosas na Europa, para
descobrir como a carne de cavalo entrou no hambúrguer, na lasanha, etc, etc.
Certamente um caso mais de auto-análise do que de “investigação”.
A JBS prometeu corrigir-se, e a Nestlé também. Essa
afirmou: "Queremos nos desculpar com os consumidores e assegurá-los que as
ações que estão sendo tomadas para lidar com esse problema vão resultar em padrões
mais elevados e melhor rastreabilidade." Os grandes players
buscam tirar o cavalo da chuva, reconhecendo que sua “rastreabilidade” foi, até
agora, pífia.
II
Por que o consumidor, abalado na sua confiança na
indústria e nos governos, acreditaria que eles irão se emendar daqui em diante,
como crianças pegas com a mão no pote de balas? Certamente o único caminho será
re-acreditar a rastreabilidade, e isso depende de ser feita por novos atores,
por organismos independentes, controlados e vigiados por representantes dos
consumidores, distantes dos governos e das grandes corporações.
Em segundo lugar, será preciso acoplar mecanismos
de vigilância sanitária às próprias operações financeiras com commodities
alimentares. Não é possível admitir que qualquer coisa de comer passe, como uma
simples troca de papéis e transferências bancárias, da Romênia para Chipre,
para a Holanda, por Luxemburgo, para chegar na França sem ter sofrido algum
tipo de inspeção que certifique seu valor comercial como alimento sadio.
O que move essa cadeia de alimentação financeira é
uma razão que jamais chegará de modo transparente às gôndolas dos
supermercados. Afinal de contas, a dança dos cavalos só mostra que a lógica dos
negócios em bancos e bolsas de valores - como a participação de ações do
agribusiness em fundos de investimentos - se tornou autonoma de um modo que os
consumidores reconhecem como perigosa.
III
Está visto que a financeirização da comida aporta
riscos e incertezas à mesa, nos fazendo mal ao espírito e ao corpo. No entanto,
a ofensiva dos grandes conglomerados agroalimentares não cessa. Ao contrário,
escolhe um dos piores momentos de sua história para avançar via legislação: em
14 de fevereiro a Comissão Européia anunciou que os peixes de cativeiro
poderão, novamente, ser alimentados com farinhas de porcos e aves, já a partir
de 1º de junho - segundo o Le Monde.
Por conta da epidemia da “vaca louca”, a França
havia abolido esses componentes da ração animal em 1996, sendo que a União
Européia consagrou o mesmo procedimento em 2001. A França se opõe à medida,
agora anunciada, contra a qual já votara em meados de 2012. O Ministro da
Ecologia, Delphine Batho, propõe a criação de um rótulo que estampe os dizeres
“sem farinha animal”. Para ele, “não é da lógica da cadeia alimentar que se dê
de comer carne aos peixes. É a mesma lógica financeira absurda que se constata
para a carne de cavalo”. Ele quer salvar a “cadeia pesqueira”.
Mais virulenta, a Confederação dos açougueiros,
declarou: “É uma loucura a mais. Bruxelas cede às pressões da indústria
agroalimentar. Essa mesma industria que não hesita para fraudar e aumentar seus
lucros enquanto solapa a confiança dos consumidores”.
E basta dar uma busca na net para se descobrir empresas brasileiras que fabricam farinha
de restos organicos - inclusive penas de frangos - para alimentação de peixes.
O Chile é o nosso grande importador desse insumo para produção de salmões de
cativeiro que, depois, comeremos em belos sushis em nossos restaurantes mais
estimados.
IV
Diante desse quadro internacional, o Brasil não é
uma ilha de sanidade animal cercado por interesses financeiros insanos por
todos os lados.
Leio estudos científicos que dizem; “as salsichas
comercializadas na Região Metropolitana do Recife apresentam índices
comprometedores de nitrato, principalmente as das indústrias que abastecem as
feiras livres, fato agravado pelos altos níveis de nitrito também presente”;
vejo a legislação que autoriza certos níveis de inclusão de vísceras e cérebros
animais na mortadela, e tantas outras coisas condenadas pelas boas práticas
alimentares, e me pergunto: onde está a Anvisa?
Por que a Anvisa insiste em nos fazer de idiotas,
vendo chifre na cabeça de cavalo, criminalizando a produção artesanal - como do
queijo de leite cru - quando os grandes conglomerados alimentares deitam e
rolam, alheios às pesquisas sobre o que faz mal?
Precisamos meditar sobre essa manobra sórdida que consiste em ver riscos
na produção artesanal, quando o mundo todo vê que eles estão abrigados, como
ovos de serpente, na grande industria