Fernando Henrique Cardoso - Inovar na política
•
Meus votos são para que não haja oposição entre esquerda retrógrada e direita
golpista e que se consiga melhorar o sistema político-partidário
-
O Estado de S. Paulo / O Globo
Ano
novo, esperanças renovadas. É preciso continuar modelando o futuro com a argila
de que se dispõe. Algo dará para fazer. Que posso desejar para 2015? Primeiro,
que o Brasil reencontre o rumo. Brasil não quer dizer abstratamente um país com
seu Estado, mas uma nação com seu povo. Sem um Estado que funcione eficazmente,
nem o mercado funciona, nem a sociedade. Porém opor Estado e mercado, sociedade
e Estado, mais atrapalha do que ajuda a entender e melhorar o País. Na última
década renasceu no Brasil a ilusão de que tudo seria feito e "salvo"
pelo Estado. Deu no que deu, com mensalão, petrolão, ineficiências múltiplas e
um amálgama degenerado de "capitalismo da companheirada" que nos
levou à estagnação econômica. Que ultrapassemos isso é meu desejo.
Quem
sabe superaremos o primitivismo político de considerar como
"neoliberal" tudo o que é necessário fazer para que as finanças
públicas e a administração funcionem bem, respeitando suas possibilidades
reais, mais ou menos elásticas conforme as circunstâncias, mas nunca infinitas,
propiciando um clima favorável para que as pessoas, as organizações e as
empresas possam expandir suas potencialidades. Tomara que, ao mesmo tempo,
superemos o primitivismo de considerar como "de esquerda" quem for contrário
a essas práticas.
Claro
que se pode e deve distinguir entre "esquerda" e "direita",
com suas variantes intermediárias. Mas a oposição correta é outra: sempre foram
considerados de esquerda os que querem mudar estruturas para beneficiar a
maioria, pela via da "revolução" ou das reformas (a esquerda
democrática é reformista). A direita clássica costuma se opor às mudanças, em
particular a "reacionária", pronta para impor sua lei e ordem a
qualquer preço.
No
Brasil não estamos diante desse dilema. Não há partidos relevantes "de
direita", tampouco "revolucionários", à esquerda. Quando
necessário, há os que se definem como liberais, de um lado, e
social-democratas, de outro. Ainda muito numerosos são os setores que
representam o atraso (práticas clientelistas, lenientes com a corrupção e com o
arbítrio do Estado). Meus votos são para que não enfrentemos uma oposição entre
esquerda retrógrada e direita golpista.
Sendo
progressista, portanto, "de esquerda", desejo que se consiga alcançar
consensos que melhorem o sistema político partidário, dando-lhe certa coerência
ideológica. Para dar passos iniciais bastam três emendas à Constituição: voltar
a aprovar a "cláusula de barreira", quer dizer, exigir dos partidos
um número mínimo de votos em âmbito nacional e em certo número de Estados para
lhes assegurar plena representação no Congresso, acesso ao Fundo Partidário e
ao horário gratuito na TV; proibir as coligações entre partidos nas eleições
proporcionais; e vedar o uso de marketing político nas TVs. A TV seria usada
apenas para debates entre candidatos ou para suas falas diretas à audiência.
Isso reduziria drasticamente o custo de campanha. O financiamento privado, se
mantido, deve limitar-se a algo como R$ 1 milhão por conglomerado de empresas,
dado apenas a um partido, e não a todos, o que cheira corrupção. O
financiamento da pessoa física seria livre, desde que limitado em valores.
Passo
mais audacioso pode ser a introdução experimental do voto distrital nas
eleições para as Câmaras Municipais. Embora em tese eu prefira o distrital
misto, essa proposta, do mesmo modo teria a vantagem de não alterar a regra
constitucional que exige a proporcionalidade e, além disso, de ter mais adeptos
do que o sistema distrital misto. Essa modificação abriria espaço para, no futuro,
estender a prática às eleições estaduais e nacionais. Ao longo do tempo, o
espectro político encolherá e se tornará mais nítido.
Atualmente
a polarização PT-PSDB distorce o significado do voto, já que os ideários dos
dois partidos não são necessariamente antagônicos. Nascidos como
"primos" no final do regime militar, esses dois partidos pertencem à
família "social-democrática". Não obstante, um se acredita mais
"à esquerda", com ingredientes de socialismo revolucionário e,
juntamente com eles, elementos autoritários; o outro é mais liberal, embora
decididamente favorável à regulação pública de setores da economia.
Na
refrega, o PT empurra o PSDB para "a direita" e, em reação, o PSDB
empurra o PT para o lado do "atraso corrupto". Não existe direita organizada
no espectro partidário brasileiro. PT e PSDB distinguem-se mais pela
contemporaneidade do último, que reconhece explicitamente a necessidade de dar
ao mercado o papel que lhe corresponde nas sociedades contemporâneas, da mesma
forma que não atribui ao Estado todas as virtudes. O PT, quando também age
assim, é a contragosto, levado pela realidade.
A
maior diferença entre os dois partidos é o modo como enxergam os processos
políticos que levam à mudança: o PT crê numa vanguarda partidária que pela via
eleitoral ganha o governo, apropria-se do Estado, infiltra-o com militantes ou
"aliados" e, a partir disso, alavanca as reformas da sociedade. O
PSDB, mais liberal, quando controla o governo não crê que deva juntá-lo ao
Estado nem deseja usar este último como ferramenta quase exclusiva das reformas
e dos avanços sociais, pois acredita mais na dinâmica da sociedade civil como
mecanismo de mudança. E a direita onde fica? No atraso, no clientelismo, na
luta por verbas e ministérios, mas sem expressão propriamente
político-ideológica. O mesmo se diga da esquerda revolucionária, refugiada na
teoria e no romantismo.
Meu
desejo para 2015 é que tanto o PSDB quanto o PT e as novas forças políticas
(como a Rede ou o Partido Novo) incorporem em suas crenças e práticas algo mais
contemporâneo. Que olhem para as questões da sustentabilidade, da mobilidade
urbana, da segurança, educação e saúde, entendendo as funções do mercado e do
Estado no século 21; que não tenham medo das mudanças de estilos de vida, não
fujam da discussão sobre regulação das drogas e se lembrem de que o debate
político, tal como é hoje, dá às pessoas comuns a sensação de que os políticos
estão numa conversa "entre eles", sem falar "com a gente".
Sociólogo,
foi presidente da República