Teorias, pesquisas e reflexões sobre a gastronomia brasileira, por Quentin Geenen de Saint Maur
sábado, 3 de outubro de 2009
A Mesa e o Tempo por Frederico Lucena de Menezes
A MESA E O TEMPO
Escutei, há muitos anos, o seguinte diálogo entre minha mulher e sua mãe:
“Minha filha, hoje não jantarei com vocês, pois tenho pouco tempo”.
“Podemos fazer um jantar mais rápido”.
“Não faça isso, seu jantar é uma missa!”.
A boa refeição é mais que boa comida. É ritualizada, e rituais tomam tempo de outras atividades para que saindo do profano, se aproximem do sagrado. Daí a referência à missa. A frase da doce senhora não era uma queixa; era um lamento por não poder rezar naquela noite.
Um grande banco brasileiro usou recentemente o tempo na sua propaganda, lembrando que a vida é boa, mas com tempo é especial.
Como contrapartida, temos a famosa máxima - ou mínima, no caso -, que tempo é dinheiro. Geralmente isso é entendido que quanto menos tempo gastarmos com atividades improdutivas, melhor. Também pode significar que o tempo, por si só, é valioso.
Novamente, vou ilustrar: recém-chegado a Washington fui convidado para almoçar com um diplomata estadunidense, desejoso de retribuir alguns encontros que eu havia proporcionado em São Paulo. Vesti-me de terno e gravata sabendo que ele sairia do trabalho, e voltaria para lá. Não queria destoar. Estranhei o ponto de encontro: uma esquina de avenida comercial movimentada, com uma praça. Era verão. Fazia sol e calor. Cheguei cedo e não vi restaurante algum nas imediações. Assustei-me com uma mão firme pegando meu braço e me conduzindo apressadamente para dentro da farmácia, na mesma esquina onde eu estava. Lá havia um buffet de saladas, caixinha de plástico transparente com divisões, talheres de plástico, garrafinha de suco de laranja e mais guardanapos do que o necessário. Peguei uma mini garrafinha de tinto californiano que ninguém é de ferro. Cada um pagou o seu no caixa onde a primeira da fila comprava xarope para tosse. Acompanhei os passos rápidos e determinados do meu comensal a um banco de praça – no sol -, antes que alguém o fizesse. Comemos enquanto eu respondia como podia às perguntas secas que pretendiam demonstrar interesse pelo meu bem estar na volta aos Estados Unidos, onde deveria ficar alguns anos mais. Ao final, abriu uma caixinha de onde tirou uma pílula. Perguntei se era medicação de uso constante. Não, era a essência do vinho tinto que fazia os franceses terem menos infartos do miocárdio que os norte-americanos! “Sem precisar beber” disse, olhando para minha garrafinha vazia. Perguntei se ele havia considerado a hipótese de o coração dos franceses gostar mais de tirar o paletó, sentar à sombra, comer com talheres em prato sobre uma mesa com toalha e tirar uma soneca depois. “Leva tempo demais”, foi a resposta enquanto atirava os detritos numa lixeira pública. Nunca mais fui “convidado” por ele.
“Leva tempo demais”. Fiquei com essa frase na cabeça enquanto acariciava minha garrafinha vazia. Pensei nas muitas refeições protocolares a que compareci e percebi melhor como o protocolo e a estética se imbricam. Quando se vê a mesa posta e arrumada, percebe-se o tempo e o cuidado que foi dedicado à ocasião. Adianta-se a visão do número de convidados. Pelos copos sabe-se que bebidas serão servidas o que dá a dimensão dos tempos, das fases da refeição. Diminui a ansiedade. Para isso serve o protocolo; para antecipar a seqüência dos acontecimentos no seu aspecto formal.
A formalidade, no entanto, tem muitas faces. A mesa arrumada na hora, a ajuda dos poucos convivas na distribuição de louça, talheres e copos nos lugares, é uma das formalidades mais gostosas. Principalmente se tiverem passado – a convite – pela cozinha do anfitrião, pressentindo sabores pelos cheiros e cores. Pelos ruídos e calores.
Esses aspectos são parte do ágape, da caridade no convívio que só faz sentido com tempo e sensibilidade. O tempo não é apenas um devorador de tudo e todos que se apresentem ao seu apetite. O tempo pode ser o terreno onde se planta sementes de vida, de serenidade no compartilhar. Nenhuma imagem melhor para demonstrá-lo do que uma refeição saborosa, bonita e ritualizada. Sobretudo com o tempero do sentimento de tê-la merecido.
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Às vezes, os americanos me lembram muito nossos antepassados lusitanos: engolir uma pílula que contém a essência do vinho tinto que previne os infartos do miocárdio "Sem precisar beber” é, realmente, de uma obtusão assustadora!
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