sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Maria Cecilia Londres Fonseca - SISTEMAS AGRÍCOLAS LOCAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL

No próximo dia 5 de novembro, em reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN, será apresentada proposta encaminhada pela Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro – ACIMRN, em 2007, de Registro, no Livro dos Saberes, como patrimônio cultural imaterial do Brasil, do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, no estado do Amazonas. Trata-se de uma proposta inovadora, diferenciada em relação a outros bens culturais já registrados, como o “Ofício das baianas de acarajé e mingau”, na Bahia, e do “Modo artesanal de fazer o Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre”, que referem processos de produção de alimentos.

O pedido é formulado nos seguintes termos:

“O sistema agrícola desenvolvido pelas comunidades ao longo do Rio Negro, da cidade de Barcelos até o Alto Rio Negro- município de São Gabriel da Cachoeira, apresenta as seguintes particularidades que justificam essa solicitação. A primeira delas é o contexto multiétnico e multilinguístico no qual este sistema agrícola é elaborado, desenvolvido e constantemente atualizado. As diversas etniais, no mesmo tempo que produzem e resguardam variedades agrícolas, têm em comum formas de transmissão e circulação de saberes, práticas e produtos que respoondem pela altíssima agrobiodiversidade da região. Trata-se de uma agricultura de pousio praticada em condições de baixa pressão demográfica o que lhe outorga um caráter de alta sustentabilidade. O elemento central, e estruturante, desta agricultura é a mandioca, representada nas roças por dezenas de variedades coonstituindo uma forma de manejo única em todo o Brasil da diversidade. O processamento da mandioca para consumo envolve uma série de etapas específicas e o uso de artefatos, em geral de cestaria, que expressam dimensões culturais importantes.

Mais de uma centena de plantas cultivadas, entre fruteiras, medicinais e outras categorias, acompanha a mandioca, enfatizando o papel das comunidades indígenas do Rio Negro na constituição e na conservação de um amplo patrimônio biológico e cultural. O sistema alimentar desenvolvido na região incorpora estas produções locais bem como elementos trazidos de fora ao longo de sua história, e apresenta uma alta diversidade de preparações principalmente à base de mandioca (farinhas, beijus, caxiris...).”



Falar em “sistemas agrícolas locais” remete, portanto, não apenas à sua dimensão biológica – modos de cultivo de espécies e variedades vegetais – como aos conhecimentos, técnicas, práticas, produtos, artefatos, e, eventualmente, mitos, cantos e outras expressões culturais que lhes são associados, assim como à consideração de toda a cadeia produtiva, desde a preparação do solo para plantio, a obtenção de sementes, até os sistemas alimentares, envolvendo a preparação, consumo e, quando for o caso, comercialização da produção. Implica, portanto, em considerar conhecimentos sobre os recursos da natureza, técnicas de manejo do solo, uso de instrumentos e insumos, como também o modo de vida das populações que fazem desse tipo de prática agrícola sua principal ocupação: seu modo de ocupar o espaço, de morar, de alimentar-se, de relacionar-se, de organizar-se como coletividade, de se expressar e representar o mundo, dimensões todas associadas, de alguma forma, à atividade em questão.

Esses sistemas podem ser identificados, no Brasil, sobretudo entre os povos indígenas e as populações tradicionais, principais responsáveis pela diversidade das variedades de espécies que aqui são encontradas. Foco de interesse das políticas públicas voltadas para a agricultura e o meio-ambiente, esse tema adquire agora uma dimensão muito mais abrangente, que podemos resumir no entendimento amplo da noção de “cultura”. Por outro lado, vem reforçar um entendimento mais inclusivo da noção de patrimônio cultural brasileiro, que vem atender a uma “demanda reprimida” daqueles grupos sociais que não estavam adequadamente representados no repertório dos bens protegidos pelo Estado – como as comunidades indígenas, afro-brasileiras, ribeirinhas, assim como grupos que reproduzem e recriam manifestações de cunho eminentemente popular.

Mas, dado o caráter inédito da proposta , cabe perguntar: em que medida o Registro de “sistemas agrícolas locais” como patrimônio cultural do Brasil apresenta desafios e possibilidades específicos, em que medida, em suma, é viável?

Nesse caso, a distinção que recentemente se tem feito entre bens culturais de natureza material (imóveis, obras de arte, bens naturais, arqueológicos, etc) e bens culturais de natureza imaterial (expressões de caráter processual e dinâmico, que dependem da ação humana para se manifestarem, como celebrações e rituais, danças, saberes ligados à produção de bens materiais, etc.) não se aplica, pois, na referência a “sistemas”, essas dimensões estão indissociavelmente integradas.

Um bom exemplo dessa perspectiva está na observação da antropóloga Dominique Tilkin Gallois, comentando a fala do índio Wajãpi João Asiwefo Tiriyó quando perguntado sobre a diferença entre patrimônio material e imaterial. “É tudo misturado!” diz João. E continua: “Todos nós sabemos que o imaterial é a fonte do material.” Diz a antropóloga: “para apreciarmos a riqueza dos patrimônios culturais indígenas, é necessário considerar essa “mistura” entre aspectos materiais e imateriais e, sobretudo, procurar as variadas “fontes”do conhecimento, para além dos saberes tecnológicos.” Ou seja, no caso específico dos índios Wajãpi, do Amapá, esse recorte recente não faz sentido, pelo menos do modo como foi elaborado no âmbito das políticas de patrimônio - e sim crença de que toda a produção de bens materiais emana do conhecimento, que está “dentro” e que é transmitido de geração a geração.

Ora, essa noção de patrimônio é bem diferente da que predominava na Europa nos séculos XIX e XX, de que o Brasil e a própria UNESCO eram tributários até muito recentemente. O foco nos bens materiais e nos critérios de antiguidade, monumentalidade e autenticidade levavam à exclusão da inscrição, nos repetórios dos bens a serem protegidos pelos Estados nacionais, e depois, na Lista do Patrimônio Mundial, da UNESCO, de grande parte das expressões mais siginificativas em termos traços identitários de inúmeras culturas ao redor do mundo, como, por exemplo, daquelas do Extremo Oriente. Hoje, o critério que orienta a constituição dos patrimônios culturais é o da “diversidade”, e do respeito pelo ponto de vista das comunidades envolvidas na escolha de bens que consideram referências significativas de suas culturas.

Mas essa nova postura suscita uma série de questões:

- como identificar, delimitar e constituir, para fins de Registro, os bens a serem nomeados Patrimônio Cultural do Brasil? Como definir o foco que qualificará esses bens de caráter processual, cuja abordagem implica na consideração não de um bem fisicamente delimitável – como é o caso dos bens de natureza material, em que se definem, nos processos de tombamento, no caso, por exemplo, de bens imóveis, poligonais, volumetria, etc. – mas uma multiplicidade de elementos interdependentes em um contexto sócio-cultural, econômico e ecológico de fronteiras imprecisas?

- como identificar os detentores desses bens, suas demandas e redes de relações, uma vez que um mesmo tipo de manifestação – por exemplo, as manifestações que têm na figura do boi sua principal referência – ocorrem em diferentes contextos por todo o país? Com base em que critérios privilegiar uma delas, para fins de Registro, e quais as conseqüências dessa opção?

- como identificar os atores que tenham, aos olhos do grupo, legitimidade para representá-lo, e como “desconstruir” a noção de “comunidade”, tão utilizada no léxico referente ao patrimônio imaterial, entendida como se se tratasse de um conjunto homogêneo, isento de conflitos?

- que medidas de salvaguarda seriam adequadas, na medida em que é fundamental levar em consideração a singularidade de cada manifestação?

- como avaliar os resultados dessa nova política e acompanhar os efeitos do Registro ?

- qual o papel do poder público, e mais especificamente de seus agentes, em todo o processo de patrimonialização dos bens culturais de natureza imaterial ?

A partir da discriminação dos vários elementos do sistema – plantas cultivadas, espaços, redes sociais, cultura material, sistemas alimentares, saberes, normas e direitos, foi possível configurar uma dinâmica social e cultural particular, que ocorre, num território geograficamente definido, – a região do médio e alto Rio Negro – entre diversas etnias indígenas, em torno de modos diversificados de cultivo de plantas, em que se destacam as variedades de mandioca. Por modos de cultivo, entende-se não apenas a prática agrícola, mas toda a dinâmica de trocas – com determinados sentidos e valores marcados positiva ou negativamente - que propicia essa fantástica agrobiodiversidade. O interesse nesse patrimônio decorre, portanto, de sua importância para a preservação da biodiversidade e da diversidade cultural.


Trata-se de sistema de produção voltado sobretudo para o consumo interno ao grupo, sendo fundamental desenvolver estratégias para o máximo aproveitamento dos recursos disponíveis, visando a garantir a segurança alimentar das populações locais. Uma dessas estratégias é a de recorrer a espécies e variedades de plantas cultivadas que melhor se adaptem a cada situação, e, nesse processo, como fica demonstrado nos estudos apresentados, a componente cultural tem um papel fundamental.

Nesse sentido, a instrução do pedido é exemplar, na medida em que são explicitados valores que, para os agricultores – ou melhor dizendo, sobretudo agricultoras - que têm como principal atividade o cultivo da mandioca, constituem, do seu ponto de vista, um patrimônio coletivo: a capacidade de produzir variedades da planta e a valorização da coletivização desse conhecimento, que deve circular conforme regras estabelecidas em função da organização social das etnias envolvidas.

O entendimento do sistema agrícola do Rio Negro enquanto um saber vem enriquecer o compreensão dessa noção, nesse caso voltada para um “fazer”, e o uso do termo “sistema” sinaliza, para a sociedade, uma perspectiva mais abrangente, articulada e integradora do que seria o objeto do Registro, distinguindo-se de propostas em que elementos que são apresentados como bens isolados, quase que “auto-suficientes”, como é o caso dos inúmeros pedidos de Registro de comidas que chegam ao IPHAN – como o do arroz de cuxá, do bauru, entre outros.

No mesmo sentido, em relação aos Inventários desenvolvidos pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular-CNFCP a partir do feijão e da mandioca - alimentos consumidos de norte a sul do país – optou-se também por utilizar a categoria de sistema culinário, que introduz a variável “paladar” no item alimento, que passa assim à condição de “comida”, vinculada, portanto, a formas de sociabilidade e formas de pensamento Essa perspectiva permite identificar porque e como determinados elementos – e não outros - funcionam como instrumentos de identidade social, no caso, especificamente identidade regional e/ou nacional. Um exemplo são as comidas, como a maniçoba e o pato ao tucupi, que são servidas durante a celebração do Círio de Nazaré, que ocorre em Belém do Pará em outubro, mas que é reproduzida em comunidades de paraenses nos vários estados brasileiros.

Por outro lado, uma proposta de Registro fundamentada na interdependência entre conservação da biodiversidade e salvaguarda da diversidade cultural traz para o campo da cultura questões e temas abordados pelos instrumentos de preservação do meio-ambiente, e toda uma elaboração da questão dos direitos coletivos, e da necessidade de criação de regime jurídico ‘”sui generis” para proteção dos conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos. O interesse por esse tema não se restringe aos bens relacionados à biodiversidade – pois diz respeito também formas de expressão musicais, cenográficas, etc. – mas é nesse campo que, parece, a discussão está mais avançada, inclusive em função de interesses econômicos e comerciais envolvidos.

Tendo como pano de fundo a Convenção da Diversidade Biológica-CDB, elaborada durante a Rio 92, e a atuação da Organização Mundial de Propriedade Intelectual- OMPI em nível internacional (onde funciona um Comitê Intergovernmental de Propriedade Intelectual sobre Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore) vem sendo criada no Brasil, toda uma série de instrumentos legais – como a Lei dos cultivares, de 1997 - e instâncias de caráter deliberativo e normativo, como o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, criado no âmbito do Ministério do Meio Ambiente em 2001, e onde tem assento o Ministério da Cultura.

Ora, a inclusão, no repertório de bens registrados, de conhecimentos associados a recursos genéticos faz com que a instituição cultural se envolva e se comprometa com as questões relativas à proteção dos direitos intelectuais coletivos. Também a exigência de anuência prévia fundamentada – preconizada pela CDB quanto ao acesso aos conhecimentos tradicionais - dos detentores do bem para abertura do processo de Registro é princípio incorporado à prática de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial.

Mas cabe perguntar: em que medida a abordagem dessas questões, na perspectiva da preservação do patrimônio cultural, poderia trazer contribuições para a busca dos instrumentos e formas de conservação adequadas? E, em que medida a noção de “sistemas agrícolas locais”, como na proposta mencionada acima, teria especial interesse?

- Em primeiro lugar, a pesquisa histórica como parte dos Inventários que compõem os dossiês para Registro pode indicar não apenas a continuidade , no tempo, daquela manifestação cultural - como detentores anteriores, usos que foram substituídos ou simplesmente desapareceram, etc. - mas revela-se especialmente importante no sentido de, ao comprovar com documentação a anterioridade e ancestralidade de conhecimentos e práticas por parte de determinados grupos, contribuir para evitar a apropriação privada indevida – por meio de patentes, por exemplo – de conhecimentos que são produzidos e transmitidos coletivamente.

- Por outro lado, a abordagem uma prática agrícola não como fato isolado, mas a partir de sua inserção num sistema amplo e complexo de relações sociais, e numa rede de significados e valores, fornece importantes subsídios para o planejamento de ações de salvaguarda voltadas para as condições de sustentabilidade não apenas daquela prática específica, mas de todo um contexto de que ela é parte integrante e que lhe dá sentido.

-Finalmente, o reconhecimento e a declaração de um “sistema agrícola local” como Patrimônio Cultural do Brasil inevitavelmente provocará um novo olhar dos detentores sobre o seu patrimônio, até então transmitido de geração a geração, com conseqüências que a prática acumulada no campo das políticas de patrimônio cultural imaterial no Brasil ainda não permite avaliar. Somente o acompanhamento desse processo – previsto inclusive pelo decreto 3551/2000, que “institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial” e que prescreve uma reavaliação do Registro a cada dez anos – poderá indicar os efeitos da aplicação desse recente instrumento de salvaguarda, que, por não pretender a proteção da integridade do bem, como no caso do tombamento, mas ações a serem elaboradas e implementadas visando à sua sustentabilidade, e tendo como protagonistas os detentores desses bens, certamente abre um leque imprevisível de possibilidades.


Rio de Janeiro, 2 de novembro de 2010.


Maria Cecilia Londres Fonseca

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