Folha de São Paulo, quinta-feira, 21 de julho de 2011
Comida não viaja
Caricatos e sem viço, restaurantes de comida brasileira no exterior focam na cozinha saudosista para imigrantes e não são sucesso nem de público nem de crítica
Letícia Moreira/Folhapress
Restaurantes brasileiros no exterior têm dificuldade de encontrar cozinheiros; dos três do Rice'n'Beans, em Nova York, dois são mexicanos e só um é do Brasil
DE WASHINGTON, MADRI, PARIS, BERLIM, LOS ANGELES E NOVA YORK
O cardápio traz uma tal de "paella brasileira". Uma mistura, explica o menu, de camarões, mariscos, lula, arroz... E um molho verde de coentro, "jalapeño", agrião, alho, curry, vinho e azeite, tudo na panela de barro.
"Todo mundo pede", afirma Alcy de Souza, dono do Grill from Ipanema, restaurante brasileiro em Washington. No cardápio, há ainda um linguine de feijoada.
Os pratos, de causar estranheza, são uma caricatura da cozinha brasileira. Mesmo nos lugares mais fiéis, a lista não passa de feijão-preto, mandioca, bife acebolado, farofa, moqueca, coxinha e pão de queijo. Tudo bem-feito, mas sem brilhantismo nem arroubos de criatividade.
"A comida brasileira em Madri não tem nada a ver com o alto nível e variedade que provei quando estive no Brasil. A cena culinária de São Paulo me pareceu fora de série", afirma a jornalista Rosa Rivas, repórter de gastronomia do jornal "El País".
Para entender as dificuldades de levar a comida brasileira para fora do país, a Folha visitou restaurantes em Washington, Boston, Nova York, Los Angeles, Madri, Berlim, Londres e Paris.
IMPROVISO
Em comum, chefs e donos relatam a dificuldade de trazer ingredientes e de achar cozinheiros acostumados aos temperos do Brasil. E daí surge o improviso no fogão.
Para driblar a demora da burocracia francesa na importação dos ingredientes, o Gabriela, em Paris, usa picanha argentina, chuchu asiático, couve espanhola e arroz tailandês. O atraso faz com que os produtos cheguem do Brasil "quase vencidos".
Muitas vezes, a comida caseira improvisada nem sequer é feita por brasileiros.
No Rice'n'Beans, de Nova York, os donos são a filipina Sally Chironis e o bengalês Tito Rahman. Dos três cozinheiros, dois são mexicanos.
Alcy de Souza explica por que os cozinheiros que estão há 19 anos em seu Grill from Ipanema são salvadorenhos. "Brasileiro não fica. Quando faz um dinheirinho, já quer abrir o próprio negócio."
Resultado: sem sucesso de público nem de crítica, e de pobre ambição culinária, os restaurantes se amparam no banzo da comunidade expatriada, com foco nos imigrantes saudosistas.
No concorrido almoço de domingo, o movimento no Grill from Ipanema, em Washington, era mediano. Quase todos eram brasileiros. Alguns americanos chegaram para o "happy hour".
"Para os gringos, comida brasileira agora é churrascaria. O segmento está bombando", afirma o chef Márcio Silva, do Oryza, em São Paulo, que morou 14 anos em Nova York. "Uma pena."
O diagnóstico de Silva se repete ao redor do mundo.
Na capital espanhola, afinal, o rótulo de "brasileiro" é quase sempre colado a restaurantes que funcionam no esquema de rodízio ou bufê.
INGREDIENTES
Celso de Freitas, chef e dono do Gabriela, lamenta. "Desde 2005, o ano do Brasil na França, as coisas melhoraram, mas ainda é complicado achar ingredientes como carne-seca, requeijão e cachaça artesanal."
O Muqueca (assim mesmo, com "u"), na região de Boston, que o diga. Sem licença para vender destilados, oferece um arremedo de caipirinha com uma espécie de vinho licoroso que não passa no teste nem entre os que nunca provaram a versão original com aguardente.
Quando aparece, a clientela estrangeira vem atraída pela imagem exuberante do país no imaginário coletivo.
No Gabriela, o salão é decorado com um boneco barbudo do ex-presidente Lula, com fotos de índios, do Cristo Redentor, de Pelé. Plantas penduradas no teto criam um clima de selva.
No Café do Brasil, em Berlim, mulatas seminuas rebolam entre as mesas e capoeiristas tocam atabaque enquanto os clientes comem.
A dona, Aldacy Santos-Kleindienst, reclama da dificuldade de se firmar na cena gastronômica do descolado bairro de Kreuzberg, apesar dos dez anos do negócio.
"Você quer representar seu país, mostrar que o Brasil não é só samba, suor e cerveja, mas se sente aniquilado."
Nos EUA, a comida brasileira tem eco na culinária do sul do país, também de passado escravagista. Na Europa, os pratos às vezes são suavizados e servidos em etapas, costume local.
Na maior parte das vezes, para dar liga ao cardápio, evoca-se a ideia da comida caseira -epíteto que engole quase qualquer coisa.
(LUCIANA COELHO, LUÍSA BELCHIOR, CíNTIA CARDOSO, CAROLINA VILA-NOVA, FERNANDA EZABELLA E ÁLVARO FAGUNDES)
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