- 19 de fevereiro de 2014 - Redação Paladar
Por Débora de Carvalho Pereira*
Especial para o Estado
Na primeira segunda-feira de fevereiro, um salão do hotel Belle Vue,
em Lille, norte da França, se arrumou todo para receber dez peças de
queijo. Os aromas que tomaram conta do espaço eram típicos da fromagerie
francesa, mas os queijos eram brasileiros, produzidos na Serra da
Canastra. Eles foram maturados na França, numa experiência que durou
cinco meses, protagonizada por dois famosos afinadores: Jean-François
Dubois, da Bons Pâturages, e Philippe Armand, da La Finarde.
A experiência começou em setembro, quando entreguei os queijos a
eles. Vivo na França, mas trouxe na mala alguns queijos brasileiros para
um simpósio do Slow Food e incluí no lote peças extras para serem
afinadas pelos especialistas.
Afinador de queijo é o profissional que usa diferentes métodos e
técnicas para maturar a peça. Sabe quando o queijo está pronto para o
consumo, se deve potencializar ou amenizar os aromas, aumentar ou
reduzir a acidez e se o queijo deve ser contaminado com alguma bactéria
ou fungo. Enfim, é o profissional que deixa o queijo pronto para o
consumo.
A ideia era testar diferentes métodos para, posteriormente, essas
técnicas serem testadas ou aplicadas no Brasil, onde a cura do queijo
ainda é um campo a ser explorado.
FOTO: Débora de Carvalho Pereira/Estadão
Eles ensaiaram formas de cura em diferentes ambientes e com
tratamentos especiais. A degustação evidenciou o grande potencial de
maturação e cura dos queijos, que apresentaram resultados bem variados
de gosto, textura e aroma.
Os dois queijeiros têm butiques a menos de 50 metros de distância,
são concorrentes há mais de 20 anos e nunca tinham se falado.
Inicialmente desconfiadíssimos um do outro, sem querer detalhar as
técnicas, os afinadores terminaram o evento num relaxado bate-papo sobre
consumidores de Lille.
Armand é mais desconfiado que mineiro. Tem medo que roubem seu método
de maturar em bebida alcoólica (no canastra usou cachaça). E só se
convenceu a falar um pouco sobre a técnica quando soube que o texto
seria publicado apenas no Brasil.
Caves. Os dois queijeiros receberam queijos iguais,
elaborados pelo mesmo produtor, com leite cru, e com uma semana de idade
– exceto um, que foi para Armand com um mês de cura.
Jean-François Dubois curou as peças em duas caves subterrâneas
naturais e usou também três salas artificiais. Ele trabalha sobretudo
com umidade saturada, entre 85% e 95%, o que permite o desenvolvimento
de ácaros e bactérias, como o mucor, que proporcionam cascas especiais
aos queijos. Ele também trabalhou uma das peças isoladamente, para
conhecer o efeito da maturação apenas com bactérias brasileiras.
Philippe Armand amadurece os queijos apenas em caves naturais, no
subsolo de sua butique localizada na área central de Lille. Mantém menor
umidade – em torno de 60% a 70% – e tem o hábito de curar queijos com
bebidas alcoólicas, o que lhes confere sabor bem peculiar. Seus métodos
são mais viáveis para a produção no Brasil: por não exigir umidade
saturada, a cura pode ser feita em uma geladeira, a 12ºC.
É verdade que esperar os queijos curarem encarece o produto, mas
torna o gosto do queijo muito mais complexo que o de queijos frescos ou
meia cura. No caso do canastra, a cura acentua o gosto picante, o aroma
fica mais intenso e a textura varia conforme a umidade do ambiente.
JEAN-FRANCOIS DUBOIS
Umidade: 85%
Temperatura: 12°C
Meio lá, meio cá
Método: sobre tábua de pinheiro, virado uma vez por semana.
Como ficou: não muito macio, nem muito acentuado no paladar. Apresentou defeitos na casca, que podem ser de fabricação.
O bolor não pegou
Método: sobre palha em tábua de pinheiro e perto de peças de
saint-nectaire, queijo que desenvolve um bolor chamado mucor. Virado
uma vez por semana.
Como ficou: praticamente não desenvolveu bolor. A massa não ficou muito macia. O gosto ficou sutil e complexo.
Requeijão pornô
Método: lavado toda semana com água salgada, técnica dos queijos marroiles, de cheiro forte e fermento vermelho na casca.
Como ficou: cremoso, como um requeijão. Ficou com cheiro pornográfico, forte demais. Poderia ter sido curado um mês menos.
O melhor de todos
Método: cave natural vazia, sobre tábua de pinheiro. Sem nenhuma flora bacteriana para contaminar o queijo.
Como ficou: massa muito macia, quase cremosa. As bactérias da Serra da Canastra proliferaram, dando mais sabor ao queijo.
Casca com ácaro
Método: cave de queijo mimolette, com abundância de ácaro.
Como ficou: adquiriu o gosto do mimollete, levemente amargo, com tons de alcaçuz. A casca ficou bem dura e esfarelada.
O interior continuou macio e ficou amarelo.
PHILIPPE ARMAND
Umidade: 70%
Temperatura: 12°C
Algo pecorino
Método: escovado com escova dura de náilon e virado uma vez por semana.
Como ficou: um pouco seco, com massa semidura. Bom para ser ralado.
Ficou mais parecido com um pecorino que com um parmesão (de massa bem
dura).
Banho de cachaça
Método: uma vez por semana, foi lavado com cachaça e escovado com escova de náilon dura.
Como ficou: a massa ficou seca, com cristais brancos no interior e a
casca, amarelada. O álcool não altera o sabor, que ganhou um toque suave
de amargor.
Canastra cheese
Método: amadureceu em cave artificial de cura de queijo de cabra, com 80% de umidade. Foi virado uma vez por semana.
Como ficou: seco, mas macio por dentro, com gosto picante bem acentuado. Ficou parecendo um stilton, estilo de queijo inglês.
Embebido
Método: queijo envolto em tecido embebido em cachaça, em pote fechado.
Durante o processo, a cachaça foi adicionada regularmente, para manter a
umidade.
Como ficou: a consistência se tornou igual à do queijo fresco, mas com forte sabor alcoólico.
Em filme plástico
Método: o queijo foi enrolado em filme plástico para conservar suas
características, pois foi o único que chegou do Brasil já curado (tinha
um mês de fabricação).
Como ficou: conservou o sabor original, mas, no fim da maturação, a massa do queijo estava um pouco mais seca.
Nossas bactérias têm futuro
* O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de produtores de queijo (atrás da Índia, EUA, China e Paquistão).
* 300 mil peças de queijo são produzidas todos os dias em Minas Gerais.
* Há 30 mil produtores de queijo de leite cru (grande parte deles
clandestinos) em Minas. Na França, há entre 7 e 8 mil ateliês de
fabricação artesanal.
A valorização da cura de queijos no Brasil é recente, enquanto na
França as técnicas têm sido aperfeiçoadas há pelo menos um século. Em
Minas Gerais, o reconhecimento da diversidade dos territórios e dos
produtos está começando, mas na França cada pedaço de terra já tem suas
indicações geográficas delimitadas e os produtos são catalogados. Mas a
comparação da produção entre Brasil e França traz uma surpresa: só em
Minas há mais que o triplo de produtores de queijo de leite cru do que
na França inteira.
A diversidade de bactérias dos queijos sul-americanos chama a atenção
dos laboratórios de pesquisa franceses, que já esgotaram a sua
diversidade natural, uma vez que na França a maioria dos fermentos é
padronizada e produzida por grandes empresas. O estudo das bactérias da
Serra da Canastra pode resultar em novos fermentos.
O Brasil já é o quinto produtor de queijo no mundo, mas continua
importando. Em janeiro de 2014, a Revue Laitier Française mostrou que a
exportação de queijos franceses para o País dobrou: de 800 t em 2011
para 1.600, em 2013.
* É jornalista, trabalha na revista especializada Profession
Fromager, em Lille, e faz parte da associação Sertãobras, que busca
incentivar a legalização de queijos produzidos com leite cru.