sábado, 20 de junho de 2009

Falar ou calar?

Sábado, no sítio, o artista aniversariante recebeu cinqüenta pessoas para almoçar galinhada caipira com quiabo, costeleta de porco, mandioca com manteiga de garrafa, lingüiça frita e torresmo.
A “mesa da diretoria”, com tampa de cacos de azulejos, estava ancorada na terra aos cuidados da sombra das árvores do cerrado. A vista privilegiada escorregava para um grande vale manso.
Os amigos traziam queijos, geléias, café, tortas e pães, quitutes feitos por eles ou artesãos da região.
Tudo indicava que a comunicação entre os convivas ia começar na linguagem da culinária, as dicas de produtos e receitas, a troca de novos endereços, tudo em volta dos sabores.
O vinho soltou a língua dos amigos. Uma matéria publicada no dia sobre o registro do queijo Canastra no patrimônio cultural imaterial do Brasil animou a conversa.
Uma senhora, mineira da gema, coberta com chapéu de palha amarrado com um lenço, sentada na cabeceira da mesa, fez o elogio do queijo da sua cidade natal. É sempre bom saber que as variedades dos queijos feitos com leite cru estão sobrevivendo e se multiplicando.
Aproveitei para contar que alguns Chefs de São Paulo e uma sorveteria de Brasília já haviam incorporado o queijo Canastra a seus cardápios com muito sucesso.
Não demorou a vir a pergunta:
- O senhor é de São Paulo?
- Sim.
- Estive há pouco tempo jantando com meu marido num restaurante famoso de lá, que já conhecíamos e tínhamos gostado muito da primeira vez, e foi uma decepção. Da comida ao serviço, uma porcaria.
Levei um susto. Difícil acreditar que um restaurante de renome seja descrito com essas palavras.
- O Chef estava no bar e não veio até nossa mesa. O vinho era caro e a conta total bem apimentada.
Ela logo emendou na conversa sua ida a um outro restaurante no mesmo bairro, cujo Chef tinha sido premiado como revelação do ano por uma revista gastronômica.
- O somelier nos reconheceu, ele é da nossa cidade. Atendeu a gente com a maior gentileza, trouxe o Chef até a mesa, tudo impecável e maravilhoso.
A polêmica estava acesa e os ânimos esquentados.
Um pâtissier de Brasília sentando na nossa frente concordou com a senhora, relatando que já tinha ouvido essa queixa. Não pude deixar de retorquir ao doceiro que já tinha ouvido e defendido algumas vezes criticas parecidas ao seu estabelecimento.
Lógico que é muito desagradável você ir a um restaurante com a maior expectativa e sair dele frustrado.
A pergunta foi então:
- A senhora se queixou ao Chef? Ao maître? Ao gerente?
- Não, vou escrever para ele e oficializar minha decepção.
A arte culinária é uma arte efêmera. Cada refeição é uma performance sensível. Às vezes não adianta o dono receber a crítica de um cliente alguns dias após ele ter deixado a mesa.
Parece que a boa educação ensina a não fazer crítica. Mas nesse caso onde o cliente paga por um serviço e uma obra, o melhor é chamar um dos responsáveis da casa, de preferência durante o jantar, quando a questão é a comida, e deixar de pagar o serviço facultativo se o erro está no atendimento.
Essa contribuição do cliente ajudará o responsável pela casa a acertar as falhas e tomar as devidas providências para evitar descuidos futuros, concertar o mal entendido e apaziguar os ânimos.
Identificar-se e fazer comentários na hora é um exercício notável e recomendável.

Quentin Geenen de Saint Maur

sábado, 13 de junho de 2009

Pese e Pague

No começo, achei estranha a ideia de pesar a comida no prato para saber o valor da conta do restaurante.
Escolher, pesar e pagar é costumeiro no açougue, na peixaria, no verdureiro, na feira, antes dos ingredientes irem para as mãos do cozinheiro. É verdade que hoje há quem cote o valor de um quadro por metro ou centímetro quadrado para poder padronizar o valor das obras e seguir as oscilações de cada pintor na bolsa das artes.
Superado meu preconceito, decidi dar um giro pelos restaurantes a quilo em varias cidades do país.
Uma coisa me chamou atenção na minha pesquisa: hoje no Brasil parece haver bem mais desses restaurantes do que casas de fast food. A fórmula se encontra nas mais diversas cidades, independente do tamanho e da localização.
Não sei quem criou esse tipo de serviço. Sei que é no Brasil que descobri a tendência, após ter assistido ao movimento do bufê a preço fixo, do self-service, das lanchonetes e da comida rápida.
Nos dias apressados ou em qualquer outro dia, na hora do almoço ou do jantar, os restaurantes a quilo estão sempre cheios.
Uma das razões do sucesso é sem dúvida a necessidade de fazer as refeições cada vez mais fora de casa, por causa da distância do local de trabalho ou para dar mais liberdade à dona da casa. Outra razão é o preço convidativo.
Mas não é só isso. Você encontra nesses lugares uma diversidade muito grande de pratos e combinações de produtos. E muitos deles oferecem uma comida caseira com variedades e sabor para matar a saudade da cozinha da mamãe, da titia ou da vovó.
Aí se perpetuam receitas tradicionais, regionais e diversificadas, utilizando ingredientes locais, retrato de costumes e hábitos alimentícios específicos. Grande contribuição à diversificação dos sabores e à sobrevivência de uma cozinha ameaçada pela padronização e a invasão de produtos alimentícios industriais.
No Sul do país, restaurantes a quilo servem costela de ripa, capeleti em su brodo, caldos, galetos, polentas, carnes assadas na brasa, arroz de carreteiro, sagu, compota de pêssego, café de coador.
Na região do Cerrado e Pantanal, chibé, galinhada com pequi, empadão goiano, lingüiça à moda Maracaju, chipa escaldada, salada com guariroba, peixe na telha, caldo de piranha, cachorrada e bolo de caroço de jaca.
No litoral do Nordeste, vatapá, caruru,moqueca capixaba, capiau, vatapá de fruta pão, peixe com pirão, frigideira de caranguejo, arroz de cuxá, quebra queixo.
No Sertão, tapioca, aipim com manteiga de garrafa, bolo de fubá, buchada, assada de carne de bode seca, queijo coalha grelhado, bolo de rolo, pudim de farinha d’água.
Na Amazônia, mojica, açaí com camarão seco, tacacá, peixe moqueado, pato no tucupi, caldeirada de tucunaré, maniçoba, arroz de aviu, pirarucu de casaca, doce de cupuaçu, pasta doce de tucumã.
Sabores brasileiros diversificados e salvos do esquecimento graças ao trabalho diário desses cozinheiros. Uma opção tentadora para os visitantes curiosos descobrirem uma importante vertente da cultura brasileira.

Quentin Geenen de Saint Maur

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Desconstrução ou Molecular?

Consultei o dicionário para entender melhor a palavra da moda na gastronomia: desconstrução. Construir quer dizer criar, compor, formar, idealizar. O antônimo desconstruir quer dizer destruir, decompor, demolir, derrubar.
Será que Oscar Nimeyer desconstruiu o barroco do Mercado de Diamantina para criar suas inovadoras colunas de Brasília ou simplesmente se inspirou nele?
Estamos de acordo que a capital é bela e foi bem construída. Então por que insistir na palavra desconstrução na arte culinária?
O corpo humano sem dúvida desconstrói os alimentos ingeridos para assimilá-los. Já o Chef trabalha com ingredientes produzidos pela natureza tentando harmonizar com sua criatividade sabor, cor, textura, volumes e cheiros para agradar ou surpreender pela ousadia da sua obra.
Na cozinha a tecnologia deu um grande salto nos últimos anos. Depois do fogão à lenha, os fogões a gás se multiplicaram e se modernizaram, como seus colegas elétricos. O forno micro ondas está presente na maioria das cozinhas domésticas, com sua peculiaridade de esquentar e cozinhar por fricção as moléculas da água contida nos tecidos dos ingredientes. Os fogões industriais seguiram a mesma modernização, incorporando o ”char-broil” e suas pedras vulcânicas, banho-maria, salamandra, estufas... Os fornos convectores, que unem vapor e calor, fazem verdadeiras proezas, permitindo assar peixes, legumes e carnes juntos sem alterar o paladar de cada um e preservando ao máximo a umidade dos produtos.
A ciência permitiu transformar óleo em margarina, gorduras vegetais em sorvetes. As pesquisas entre os laboratórios das indústrias cosméticas e alimentares se uniram à procura de segredos de conservação e texturas que agradem tanto ao paladar quanto ao toque.
A cozinha molecular está pegando carona nessas descobertas para atender a um público que tem sede de novidades, de novos sabores, texturas e cores dos alimentos.
A Nouvelle Cuisinne, grande movimento de décadas atrás, levantou polêmicas que derramaram muita tinta e deram assunto para muitos bate-papos. Ela deixou sua marca na gastronomia, na aparência dos pratos, na quantidade minimalista da sua apresentação, no tempo de cozimento dos produtos e na importância da qualidade das matérias-primas.
Nem por isso as velhas receitas e pratos tradicionais sumiram do cardápio dos restaurantes do mundo e da cozinha doméstica.
A gastronomia tem ainda como referência sabores da terra. Mesmo se o sal, o fogo ou o gelo modificam sua estrutura, um peixe é e continuará sendo um peixe e uma mandioca, uma mandioca com seus sabores particulares.
O que pode acontecer com este novo movimento é que a distância entre os ingredientes e a apresentação visual das novas criações fique cada vez maior.
Será que esta nova linguagem culinária, com a prioridade que dá ao visual, não se afasta da necessidade de conscientizar o público da urgência de olhar a natureza com novos olhos?
No Brasil, com sua imensa riqueza de ingredientes originais, a pesquisa de produtos autóctones pode fazer as duas coisas: aumentar o leque dos sabores e inovar na apresentação dos pratos, usando as várias técnicas que o mundo da gastronomia nos oferece hoje, do tradicional ao vanguardista.

Quentin Geenen de Saint maur

terça-feira, 2 de junho de 2009

No tabuleiro da baiana tem...

Do acarajé, trazendo os mistérios dos rituais africanos, passando pela comida sagrada com as oferendas para os deuses do Candomblé; da indumentária usada pela baiana no exercício do seu oficio, herança do vestuário da corte européia; da explosão dos sabores e das receitas complexas, até o seu registro como patrimônio imaterial.

A cultura volta assim às suas raízes: ao comer, fonte de inspiração desde os desenhos rupestres até as pinturas dos banquetes e naturezas mortas.

A culinária, a partir do final do século passado, acompanha a tendência da praticidade oferecida pela industrialização. A vulgarização da comida pronta se distancia dos símbolos e rituais ligados aos elementos constitutivos da arte de cozinhar.

O registro do acarajé no patrimônio imaterial retoma a importância das práticas distintas e diversificadas ligadas ao fazer e ao comer na gastronomia.

A baiana fica no tabuleiro com seu porte digno, um sorriso vibrante dando fluidez à sua fala mansa, vestida de “camisu” com aplicações de rendas, de bata larga realçada pelos fios-de-contas coloridos, de saias armadas brancas remanescentes do velho continente e com um turbante afro-brasileiro coroando a cabeça.

Uma verdadeira instituição feminina da aculturação no Brasil.

No universo do candomblé, Oiá e Xangô são reverenciados pelas baianas com várias comidas: abará, acaçá, caruru, canjica branca e acarajé.

Após escolher um espaço para instalar seu tabuleiro, as baianas do acarajé iniciam um ritual de limpeza, varrendo e lavando o local com água e seiva. Em seguida, forram um canto com folhas do campo, uma cabeça de alho, açúcar torrado com salsa. Depois cobrem tudo com papel manilha de cor rosa onde são depositadas as moedas, o fogareiro e um copo com água, arruda e guiné, pinhão-roxo, contas. Por fim, incensam o local.

A cozinha está armada.

Numa vasilha de ágata repousa a massa branca airada, preparada em casa, obtida depois de sovar com uma colher de madeira, até dar a liga, o feijão-fradinho deixado de molho de véspera para retirar a pele, e temperado com cebola ralada e sal.

O feijão escolhido para a massa do acarajé é comprado pela maioria das baianas nas bancas da Feira de São Joaquim, em Salvador, e a maior parte dele vem de pequenos produtores da zona da Chapada Diamantina, cidade de Irecê.

Com ajuda de uma colher, a massa é frita em um tacho de azeite-de-dendê fervendo até ficar crocante, dourada por fora e firme por dentro.

O bolinho frito na forma alongada é oferecido puro quando se trata de homenagear Xangô. Aqueles que nós costumamos ver e comer nas ruas da Bahia, de uso profano, é acompanhado do molho nagô feito à base de quiabo, jiló, pimenta, camarão seco e limão, com algumas variações como adicionando azeite de dendê. E sempre acompanhado da invariável pergunta: “Quer quente?”

Da próxima vez que você saborear um acarajé, segure-o com a mão por um momento e puxe da memória a canção na voz inigualável de Dorival Caymmi. Aumente o prazer de comer com a possibilidade de envolver todos os seus sentidos numa viagem pelo universo simbólico de uma gastronomia que é a fusão de três continentes: África, Europa e Brasil.

Enquanto isso, na feira da Torre, as paraenses em Brasília já estão de prosa com Xangô para ver se o Tacacá será o próximo a entrar na roda.

Quentin Geenen de Saint Maur

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Chef ou Cozinheiro ?

Vamos tentar clarear essa diferença no sentido coloquial, com apoio na filosofia e no trabalho de cada um.
O conhecimento e domínio das técnicas básicas e o vocabulário próprio à culinária são indispensáveis e universais.
Um Chef desenvolve uma linguagem gustativa própria, com sabores, aromas, cores e texturas para um ambiente reservado ao consumo das suas criações. Para ele o primeiro passo é a pesquisa realizada no âmbito dos produtos, ingredientes e hábitos da região onde ele se estabelece. O trabalho reside no estudo e reconhecimento dos produtos frescos e artesanais com os quais ele vai elaborar suas receitas acompanhando o ciclo natural das estações. Ele segue tendências inovadoras, globais ou mantém vivo o registro das receitas tradicionais.
É importante para um Chef se sensibilizar nas diversas áreas culturais - a arquitetura, a pintura, a moda, a musica - para acompanhar o movimento cultural existente ou inovar, contribuindo assim com sua assinatura.
Na montagem, ato de dispor os diferentes ingredientes na elaboração de um prato, ele manipula cada componente com cuidado, atento ao volume e a textura de cada um, cuidando do frágil equilíbrio entre eles.
Um dos passos importantes nas últimas décadas para elevar a culinária a arte foi o cuidado na apresentação dos pratos, acompanhando a tendência atual de valorizar a aparência. O impacto visual da estrutura dos ingredientes, o cuidado com as proporções e sua disposição no prato falam ao senso estético e iniciam um processo de aguçar os sentidos do cliente para a obra que lhe é apresentada, antes mesmo de ser levada numa garfada além do comer para o prazer da boca.
O trabalho começa pela escolha dos ingredientes. Uma verdadeira planta baixa será elaborada na mente do Chef onde têm registro todos os princípios das matérias e suas modificações, dependendo do cozimento e da evolução do seu sabor, da cor e da sua textura. Ele precisa também levar em conta o equilíbrio das cores e dos sabores para não saturar sua obra, aniquilando a essência dos ingredientes. Como se fosse um maestro dirigindo a orquestra dos sentidos com instrumentos variados, o visual, o perfume, o gosto e a textura. Ele revê suas criações até chegar ao que lhe parece uma obra prima.
Como todo criador, ele precisa de uma fonte de inspiração que em geral ele encontra na natureza ou no meio ambiente onde ele evolui.
O cozinheiro é um artífice que com base na sua formação repete ou copia receitas existentes, sem desenvolver uma tendência particular e criativa, podendo usar produtos industriais que facilitam seu trabalho.
Os jovens recém formados em escolas de gastronomia precisam perceber que os ensinamentos técnicos e culinários recebidos durante as aulas são bases indispensáveis para começar a carreira. Depois, os estágios ao lado de Chefs, compartilhando seus segredos e assimilando o capital dos seus conhecimentos, são imprescindíveis.
Digamos que os dois trabalham na área da alimentação. O Chef atua mais na esfera da criatividade, na visibilidade e valorização que ele dá aos ingredientes e ao comer consciente. O cozinheiro trata de aproveitar um nicho do mercado para alimentar o dia a dia.

Quentin Geenen de Saint Maur

Publicado na revista Roteiro Brasilia