segunda-feira, 24 de março de 2014

"O prato sumiu "


Joaquim Ferreira dos Santos
O colunista escreve às segundas O Globo

O prato sumiu

Quando a administração deste botequim à beira-mar plantado vai se dar conta? O frango com quiabo é um alicerce da cultura carioca!

Abriu mais um restaurante de tapas no Jardim Botânico, e eu, glutão, magro de ruim, como dizia aquela ex-namorada, nada tenho contra a delícia de se juntar uma sangria com presunto ibérico, e passar a noite falando abobrinha.
“That’s life”, diria o Sinatra estraçalhando um cheeseburger no PJ Clarke’s.
Come-se o que quiser, a quem se quer, e, bom filho dos índios degustadores do bispo Sardinha, acho que ninguém tem nada com isso. Ponho pra dentro e lambo os beiços. Dispenso os couverts em contrário.
Ao final dos tapas, passei a mão na barriga, que já se fazia proeminente. Imitando o Oscarito no banquete da chanchada “Sansão e Dalila”, me espreguicei, feliz e nonsense, na intimidade dos que me acompanhavam: “Huumm, estou com uma idiossincrasiiia...”.
Definitivamente, nada a obstar aos que querem variar de mesa, esta insaciável busca do prazer que move a Humanidade — mas eu sou aquele freguês chato. Reclamo do ar condicionado muito frio, da mesa manca e do som alto. Antes de sair do restaurante de tapas, pedi ao garçom gente boa para, por obséquio, me chamar o gerente.
Eu disse ao senhor catalão que estava tudo muito bom com seus nacos de polvo na brasa, tudo estava muito bem com seu corte bem fino do Pata Negra — e como prova de satisfação assinei o livro de ouro do estabelecimento. O que eu queria saber mesmo, disse-lhe com carinho, era se ele podia me informar o seguinte: onde, caramba!, onde, caracoles!, tinha ido parar o camarão ensopadinho com chuchu que desde a infância me alimentava a alma?
O Rio de Janeiro manteve a voz da Iris Lettieri no Galeão e o Copacabana Palace sem marca estrangeira na fachada. Acabou também de derrubar a Perimetral para ver a mesma paisagem dos antepassados. Em todos esses manifestos de preservação da graça carioca eu assino embaixo e ponho fé. Como freguês chato, no entanto, acho pouco.
Quando a administração deste botequim à beira-mar plantado vai se dar conta? O frango com quiabo é um alicerce da cultura carioca!
Quando o garçom que serve aos propósitos maiores da cidade vai perceber que a mesa de comida é tão patrimônio quanto os espelhos da Colombo?
Quando o prefeito vai tombar o sanduíche de carne assada do Opus?
De tapa em tapa, de sushi em sashimi, desaparece no engarrafamento dos modismos o cardápio que nos moldou a espécie, a argamassa que sustenta o rebolado da mulata e o drible de corpo do camelô na fuga do rapa. A moda é pedir um temaki e postar, “como sou internacional”, no Instagram. Eu prefiro ser visto — sou aquele senhor uivando de satisfação — atrás do prato de vaca atolada do Varnhagen.
O falso bom gosto dos endinheirados, mantenedores destes restaurantes ridiculamente caros, acha brega pedir arroz, feijão, purê e carne moída, tudo com dois ovos por cima. Não dá foto, não agrega — e o Rio, sem que alguém faça a lei da preservação do quadro negro com “rabada” escrita a giz, vai perdendo uma das suas identidades mais fortes.
Esta cidade se fez com a poesia dos rebeldes no Baixo, o balanço das mulheres a caminho da praia, o discurso dos estudantes agarrados aos postes da Rio Branco, as curvas do Niemeyer reproduzindo na arquitetura os morros no horizonte — e mais uma lista imensa de outros contribuintes.
Estes cidadãos sentavam-se à mesa de uma bisavó escrava, um avô italiano, uma mãe portuguesa ou um pai mineiro. Do sarapatel de referências gastronômicas, dessa feijoada maluca, alimentou-se a civilização carioca com todas suas grandiosidades e esquisitices. Era o batuque na cozinha de que falava o samba.
Junte a tudo isso a floresta da Tijuca, o travesseirinho de areia, os estandartes do Simpatia, o vento que sopra no pilotis do Capanema, os afro-sambas do Baden e Vinicius. Regue com o caldinho de mocotó da madrugada dos taxistas. Surge desse sarrabulho a cidade suculenta que o mundo quer conhecer.
Deletar a gastronomia popular como brega, estigmatizar o bife acebolado e o arroz com miúdos de frango, é o mesmo que mexer no tempo de marcação do surdo da Mangueira — é desconhecer o espírito da coisa. Comida tem alma.
Os botequins ainda resistem, mas já não temos a língua com feijão-manteiga do Penafiel, a isca de fígado da Lisboeta. O Cervantes, por exemplo, é a única possibilidade de um prato de miolos. É pouco para tanto endereço de espuma e fumaça contemporânea.
Urge, ruge daqui este leão faminto, um jeito de se manter algum tipo de dobradinha no cardápio afetivo dos restaurantes — antes que o Rio se transforme numa cidade sem personalidade gastronômica, cercada de cevicherias, temakarias e outras sensaborias.

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