Publicado na revista Roteiro de Brasília
Adora adentrar o espaço da cozinha, qualquer cozinha e de cozinha qualquer. Comprimento o alquimista que por lá está, olhando nos seus olhos, simpatizando com sua fisionomia e tentando descobrir sua veia gastronômica. Percebo assim o calor da casa, a personalidade dos donos, da família, da cozinheira, do Chef.
Ver panelas no fogão, de barro, de pedra sabão, de cobre, de ferro, de inox, de bambu... As de alumínio, gosto de ve-las nas estantes, areadas, verdadeiros espelhos, orgulho da maestrina do espaço, elas rebatem a luz do dia e a noite da lâmpada pendurada por um fio, esquentando o palco.
Gosto de abrir a porta das geladeiras, de descobrir as cores e volumes que seu quadro efêmero e gelado componha.
Gosto de levantar as tampas das panelas e liberar o bafo do seu conteúdo, com a ajuda da mão em formato de concha que levo até o nariz para viajar nos seus segredos íntimos. Adoro experimentar os ingredientes crus, in natura, perguntar sua origem, sua história, sentir sua textura, descobrir seu gosto antes de passar pelas mãos do criador, pelo calor ou frio.
Um dia desses entrei numa casa onde a bateria da cozinha apresentava um repertório musical digno do Hermeto Pascoal.
Logo fui chamado para arbitrar uma partida acirrada entre colheres de pau apoiadas pela torcida das tábuas de madeira e colheres de plástico ajudadas por tábuas de resina. Sentei-me no banco como juiz, colocando ao meu lado direito a família das madeiras, com os sábios da casa, e do outro a ala jovem dos derivados do petróleo.
O clima esquentou e peguei uma faca Chef como bandeirinha: vamos por partes, como todo bom esquartejador.
A ala jovem, inquieta e cheia de energia, tomou primeiro a palavra. Os lábios escondidos por uma máscara de tela branca amarrada nas orelhas feito dentista, filtrava seus dizeres deixando aparecer a timidez, logo superada pela empolgação. Em coro, sem pensar muito nos argumentos, defendiam com unhas e dentes, as mãos cobertas com luvas transparentes, o uso dos instrumentos de plástico na cozinha.
Chamamos os envolvidos e os deitamos enfileirados na mesa: as colheres sintéticas, brancas quando ainda virgens, tingidas e derretidas quando marcadas pelos seus afazeres; as tábuas de resina desenxabidas por exibir tantos riscos, retorcidas, deformadas e manchadas por sombras incrustadas na sua couraça higienicamente correta. Triste painel de uma beleza efêmera e uma responsabilidade higiênica duvidosa.
Os sábios esperaram em silêncio, sorriso sarcástico à vista, para darem o troco. Uma serie de colheres de madeira usadas, todas marrons, foram passadas de mão em mão para revelar suas historias. Uma tinha cheiro de caramelo entranhado nas suas veias, outra exalava o perfume de baunilha, outra mostrava o caminho das especiarias, outra lembrava o cheiro da maresia, todas tinham vida. Torturadas pelo fogo elas liberavam um cheiro doce de madeira queimada, sem vestígio de gazes tóxicos, ao contrario das suas rivais.
As tábuas de madeiras contaram por si mesmas os anos de casa, as várias mãos que por elas passaram, desde a escolha da sua madeira certificada, os artesãos que as confeccionaram, a mão tremula do aprendiz e a precisão certeira e segura nos cortes do Chef. Elas demonstravam um leve desgaste mantendo uma postura digna e nobre pela sua essência.Dei a palavra final à faca Chef, que para começo de conversa pediu para lavar as mãos com sabão e escovinha e depois sentenciou: “Trabalhar em cima de uma tábua de madeira é mais seguro porque não deixa a faca escorregar” e emendou num argumento infalível: “Qualquer fiapo de madeira é fibra natural, reconhecido pelo corpo humano desde sua aparição na terra e sem proporcionar desdobramentos perniciosos à saúde”.
Mas é só a opinião de uma faca. Que cada um escolha o material que lhe agrada na sua santa consciência, já que na matéria não existe certo nem errado comprovado.
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