Publicado na Revista Roteiro de Brasília
Se você nunca provou uma costela de caititu, de boi ou de carneiro segurando ela com a mão, deixou de descobrir todos os seus segredos. Pegar a comida com a mão libera uma história remota, entocada no seu inconsciente. A sensação é pessoal e intransferível, pode agradar ou desagradar.
Nesse ato “primitivo” você se transporta para além dos enigmas dos sabores e temperos da carne. A liberdade de dispensar talheres rompe preconceitos e abre uma janela de volta para a infância de cada um de nós. A criança leva qualquer objeto à boca para identificá-lo num mundo ainda sem palavras nem regras estabelecidas. Só cores, cheiros e sabores sem nome.
Lembro ter comido uma costela de boi assada inteira num churrasco oferecido por uma família de vinicultores de Bento Gonçalves. Uma mesa comprida de madeira crua se esticava debaixo de um barracão no meio da mata com os pés regados pelo rio das Antas. Só homens animavam o terreiro. O ar impregnado dos cheiros da carne assada e do carvão estalando abria um espaço além do tempo para mergulhar na memória das noites de fogueira, após um longo dia de caça. Quando me vi segurando uma costela de ripa com as duas mãos, feito Obelix na frente do seu javali, arrancando feito um felino tiras de carnes da sua presa, o ambiente se transformou num piscar de olhos num cenário tribal.
Meses depois, de volta à capital, estava sentado numa mesa decorada e cheia de protocolos comendo suculentas costeletas de carneiro assadas que desmanchavam na boca. Olhei em volta para ver se os convidados iam baixar a guarda por um momento e atacar com os dentes a carne agarrada nos ossos.
Lembrei-me vagamente das aulas de etiquetas que permitiam ao gourmet assumido, em alguns casos específicos, pegar a comida com a mão: aspargos frescos, pilão de ave, ostra crua banhada na sua própria salmoura apenas liberada da casca com a ponta da faca, niguirizushi com seu arroz apoiado levemente no molho, temaki enrolada em forme de cone em folha de alga desidratada, batatas fritas vendidas com maionese em cones de papelão nas ruas da Bélgica e costeleta de cordeiro com a parte do osso protegido por um enfeite de papel repicado, manchon. Amparado pelo manual de bom comportamento, eu ia poder levar o osso a boca discretamente e aproveitar o crocante das carnes carameladas que resistiam à faca e ao garfo.
Os ossos limpos transmitiriam ao Chef o recado que o cliente tinha aprovado seu desempenho. Todo Chef sabe que a carne assada, grelhada ou cozida com os ossos fica mais saborosa. Esses pequenos detalhes proporcionam ao comensal uma emoção gustativa de alta relevância, acordando todos os sentidos do seu paladar.
Comer é um exercício iniciado pelo visual acompanhado pelos perfumes, na boca as texturas ajudam todos os sentidos a decifrar os segredos dos temperos e do método de preparo que o Chef aperfeiçoou para realizar sua receita.
Será que a comida tecno, pirotecnia visual na moda nos dias de hoje, trará aos nossos netos a felicidade de reviver lembranças escondidas no nosso inconsciente?
Comer por comer, comer por moda ou comer consciente. A escolha é de cada um.
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