terça-feira, 2 de junho de 2009

No tabuleiro da baiana tem...

Do acarajé, trazendo os mistérios dos rituais africanos, passando pela comida sagrada com as oferendas para os deuses do Candomblé; da indumentária usada pela baiana no exercício do seu oficio, herança do vestuário da corte européia; da explosão dos sabores e das receitas complexas, até o seu registro como patrimônio imaterial.

A cultura volta assim às suas raízes: ao comer, fonte de inspiração desde os desenhos rupestres até as pinturas dos banquetes e naturezas mortas.

A culinária, a partir do final do século passado, acompanha a tendência da praticidade oferecida pela industrialização. A vulgarização da comida pronta se distancia dos símbolos e rituais ligados aos elementos constitutivos da arte de cozinhar.

O registro do acarajé no patrimônio imaterial retoma a importância das práticas distintas e diversificadas ligadas ao fazer e ao comer na gastronomia.

A baiana fica no tabuleiro com seu porte digno, um sorriso vibrante dando fluidez à sua fala mansa, vestida de “camisu” com aplicações de rendas, de bata larga realçada pelos fios-de-contas coloridos, de saias armadas brancas remanescentes do velho continente e com um turbante afro-brasileiro coroando a cabeça.

Uma verdadeira instituição feminina da aculturação no Brasil.

No universo do candomblé, Oiá e Xangô são reverenciados pelas baianas com várias comidas: abará, acaçá, caruru, canjica branca e acarajé.

Após escolher um espaço para instalar seu tabuleiro, as baianas do acarajé iniciam um ritual de limpeza, varrendo e lavando o local com água e seiva. Em seguida, forram um canto com folhas do campo, uma cabeça de alho, açúcar torrado com salsa. Depois cobrem tudo com papel manilha de cor rosa onde são depositadas as moedas, o fogareiro e um copo com água, arruda e guiné, pinhão-roxo, contas. Por fim, incensam o local.

A cozinha está armada.

Numa vasilha de ágata repousa a massa branca airada, preparada em casa, obtida depois de sovar com uma colher de madeira, até dar a liga, o feijão-fradinho deixado de molho de véspera para retirar a pele, e temperado com cebola ralada e sal.

O feijão escolhido para a massa do acarajé é comprado pela maioria das baianas nas bancas da Feira de São Joaquim, em Salvador, e a maior parte dele vem de pequenos produtores da zona da Chapada Diamantina, cidade de Irecê.

Com ajuda de uma colher, a massa é frita em um tacho de azeite-de-dendê fervendo até ficar crocante, dourada por fora e firme por dentro.

O bolinho frito na forma alongada é oferecido puro quando se trata de homenagear Xangô. Aqueles que nós costumamos ver e comer nas ruas da Bahia, de uso profano, é acompanhado do molho nagô feito à base de quiabo, jiló, pimenta, camarão seco e limão, com algumas variações como adicionando azeite de dendê. E sempre acompanhado da invariável pergunta: “Quer quente?”

Da próxima vez que você saborear um acarajé, segure-o com a mão por um momento e puxe da memória a canção na voz inigualável de Dorival Caymmi. Aumente o prazer de comer com a possibilidade de envolver todos os seus sentidos numa viagem pelo universo simbólico de uma gastronomia que é a fusão de três continentes: África, Europa e Brasil.

Enquanto isso, na feira da Torre, as paraenses em Brasília já estão de prosa com Xangô para ver se o Tacacá será o próximo a entrar na roda.

Quentin Geenen de Saint Maur

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